A crônica mudou, mas o cotidiano repleto de microepisódios dramáticos e felizes revela a angustia do que vivemos nas páginas dos jornais e revistas enquanto o café da manhã era servido próximo à Praça, onde pessoas foram se bandeando pela escadaria criada por um projeto comercial.
A morte da era cartaz é um evento marcante da história do apartamento em Pinheiros. A transição para a era digital trouxe consigo uma mudança drástica na forma como as pessoas consumiam informações. Os jornais e revistas que antes enchiam o apartamento, agora são substituídos por ecrãs de smartphones e tablets.
A súbita morte da imprensa impressa deixou os moradores ainda mais dependentes de tecnologias para acessar notícias e entretenimento. Repentina e silenciosamente, a comunicação diária mudou, e com ela, as rotinas dos moradores, que agora se habituaram a receber notícias por mensagens de celular ou em redes sociais. O apartamento, que antes era um ambiente de circulação de notícias e entretenimento em papel, agora se transformou em um espaço digital, onde a morte da imprensa impressa é sentida em cada tela.
Da leitura ao digital, uma morte lenta
O café da manhã era um ritual, pairando no ar, enquanto a leitura era a nossa companhia constante, íamos para o trabalho atentos e informados. Nesse período, o mundo digital começou a ganhar espaço, as pessoas foram se bandeando, migrando para o universo do computador, dos celulares e dos telejornais, enquanto as bancas começavam a fechar seus portões. Hoje em dia, elas são poucas, resistindo bravamente; o restante comercializa brinquedos e refrigerantes. Lembrei-me do clássico comercial criado por Neil Ferreira, A Morte dos Orelhões, que marcaram o fim dos telefones de rua. A banca da Praça Benedito Calixto, que me serve de refúgio, é a última próxima de mim a ‘vender’ informação. Dos jornais e revistas, no prédio, restam apenas três assinantes: Franco, Iara e eu. Os jornais chegam cedo, são lançados por cima do portão e, escadaria próximo à Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
Uma morte inesperada
Mas o assunto é outro. Certa manhã, descobri que Franco e Ana, que haviam chegado recentemente, assinavam o Estadão e eram meus leitores de longa data. Em uma conversa na portaria, ele me fez uma crítica construtiva: ‘O senhor tem falado muito de seus companheiros, escritores. Quando voltará a contar histórias dos personagens locais, da padaria, do povo, do bairro, dos pedintes, há décadas os mesmos? Histórias que mostram o cotidiano da cidade?’. Tinha coincidido de eu ter falado de feiras literárias importantes, mas Franco tocou no transcendental. A crônica vem mudando. O estilo poético/romântico/tradicional de Rubem Braga, Fernando Sabino, Raquel de Queiroz (a quem substituí no Estadão), Antonio Maria, Otto Lara, Paulo Mendes Campos, Luis Martins se alterou. Grandes cronistas hoje, com razão, estão voltados aos temas sociológicos, históricos do Brasil, vivemos momentos de ansiedade, preconceitos, polarização, machismo, feminismo. O que nos fere. Mas será que nosso cotidiano não está repleto de micro-episódios dramáticos, felizes, que nos trazem um sopro? E que revelam a angústia do que vivemos?
Uma morte súbita
Conto um, rápido, nada banal. Semanas atrás, meu leitor Franco desceu com a esposa, Ana, para entrar em um Uber que o levaria ao Pronto Atendimento. Não se sentia bem. Tinha acabado de pegar o jornal, sentou-se em um sofá, Ana foi verificar se o carro tinha chegado. Ao voltar, junto com o porteiro Ataíde, encontrou o marido caído no sofá. Morte repentina. Perdi o amigo, o leitor, meu ‘ombudsman’. Perdeu o leitor. Quantas crônicas uma morte repentina como essa não leva consigo?
Fonte: @ Estadão
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