Lojas de som ajustam perguntas de óbito, registros ditatoriais e atestados políticos.
Ao longo de mais de uma década, familiares de vítimas da ditadura militar (1964-1985) enfrentaram inúmeras dificuldades para solicitar a documentação oficial relativa ao falecimento de seus entes queridos. Isso se deveu à falta de registros oficiais confirmados, impossibilitando a obtenção de atestados de óbito, pois muitos casos foram registrados como morte sem a devida comprovação.
Essa lacuna na documentação ainda persistia por décadas após o fim da ditadura militar e até mesmo após o aumento da transparência governamental. A retirada de documentos da morte de indivíduos que foram vítimas de violações dos direitos humanos foi uma das muitas consequências nefastas da ditadura. Antes mesmo da promulgação da lei 9.469, de 1997, que restabeleceu a possibilidade de reconhecimento do óbito de desaparecidos políticos, muitos registros de morte tinham sido suprimidos ou não registrados, dificultando a definição dos óbitos de pessoas cuja morte nunca foi confirmada.
Morte Mascarada: Um Labirinto de Segredos e Atestados
A saga de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, que desapareceu em 1971 após ser levado para um interrogatório militar, é um capítulo trágico da história brasileira. A luta de Eunice por respostas sobre o paradeiro do marido e o reconhecimento jurídico de sua morte faz parte da trama do filme ‘Ainda Estou Aqui’, dirigido por Walter Salles, que já emocionou mais de 2,5 milhões de brasileiros.
O Documento que Abre Portas para a Verdade
Uma das cenas mais impactantes do filme mostra Eunice Paiva recebendo a certidão de óbito do marido em um cartório do Brás, no centro da capital paulista. O processo, amplamente noticiado pela imprensa, ocorreu 25 anos após Rubens Paiva sair de casa para jamais voltar. Para os jornalistas presentes, Eunice resumiu o simbolismo da retirada do documento: ‘É uma sensação estranha sentir-se aliviada com uma certidão de óbito’. Este alívio foi concedido a outras 135 famílias no dia 4 de dezembro de 1995.
Uma Lei que Reconhece a Morte e a Luta Política
Nesse dia, o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sancionou a Lei dos Desaparecidos Políticos, que reconheceu como mortas as pessoas que desapareceram na ditadura e eram ‘acusadas de participação em atividades políticas’. Em agosto daquele mesmo ano, a viúva de Rubens Paiva fora convidada pelo presidente para participar da solenidade de envio do projeto ao Congresso. O texto foi elaborado pelo jurista José Gregori. Na ocasião, ela abraçou Fernando Henrique e o então chefe da Casa militar, Alberto Cardoso. No livro que deu origem ao filme, o escritor e filho de Eunice, Marcelo Rubens Paiva, diz que o registro do cumprimento com Alberto Cardoso foi visto como um gesto de conciliação.
A Morte Não Natural: Um Reconhecimento Histórico
No atestado de óbito de Rubens Paiva e dos outros 135 desaparecidos políticos, as causas das mortes não foram especificadas. Apesar do reconhecimento formal de que foram vítimas do Estado, a informação não era registrada nos cartórios. A mudança ocorreu no último dia 10, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que os documentos devem incluir que os falecimentos se deram por ‘morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964″. Os cartórios precisam emitir novas vias com o texto em até 30 dias.
Fonte: @ Estadão
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